Do ponto de vista anatômico e
fisiológico, a visão parece ser o mais simples dos
sentidos. Certa ocasião dando uma aula sobre a Fenomenologia ilustrei que numa noite de luar um homem ao
dirigir-se para sua casa, achou ter visto outro escondido atrás de uma árvore.
Receoso que pudesse ser assaltado retornou ao local de onde saiu e pediu
auxílio a alguns amigos, que lhes acompanhou até o tal arbusto. Ao investigarem
o local, perceberam que o clarão, projetado pela lua num galho da árvore, fez
um formato de um homem. Fica aqui uma pergunta: Ele viu um homem atrás da
árvore? Sim, viu! O percebível é existente. Ele estava lá?
Não. Mas ele viu! Percebe-se que ao olharmos para uma mesma coisa não temos o
mesmo retorno. Então a visão não é tão simples
assim. Ver o mundo é muito complicado. Não basta ter bons olhos para ver. “Não é bastante não ser cego para ver as
árvores e as flores”, dizia Alberto Caieiro. William Blake certa ocasião declarou: “A árvore que o tolo vê não é a mesma
árvore que o sábio vê”. Bernardo Soares também declarou: “Não vemos o que vemos. Vemos o que somos”.
O que vemos é o mundo arranjado à nossa imagem e semelhança.
Uma companhia de cerveja colocou um
divertido e inteligente comercial na televisão. Um rapaz entra num bar. No bar
tudo é sinistro. As pessoas são tipos-mal-encarados. O barman é feio e
grosseiro. O rapaz olha desconfiado para os lados. Pede uma cerveja. Dá um
gole, e então, o milagre acontece: Tudo se transforma. O bar fica alegre, todo mundo sorri, e o barman
carrancudo se transforma numa moça linda. A teoria que está implícita no
comercial é que agente vê segundo o que carregamos dentro de nós e isso se
aplica a tudo na vida.
Há momentos na vida que agente olha
para o outro e acha que está falando da gente e contra agente, por algum motivo
que a minha consciência culpada me remeteu. Pode ser que o outro nem esteja
pensando nisso. Mas na minha imaginação está falando de mim e quer me
prejudicar de alguma forma. Meu ser se altera. Escondo-me. Escondo-me de que? Agente vê o que queremos ver. Há um gozo por
de trás dessa visão maldosa da vida. A visão por ser particular é única do
olhar. Foi isso que aconteceu
com o operário, do poema do Vinícius de Moraes. O operário via tudo mas não via
nada, até que um dia ele conseguiu ver o que não havia visto:
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão -
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção
(...) Naquela casa vazia
Que ele mesmo levantara
Um mundo novo nascia
De que sequer suspeitava.
O operário emocionado
Olhou sua própria mão
Sua rude mão de operário
De operário em construção
E olhando bem para ela
Teve um segundo a impressão
De que não havia no mundo
Coisa que fosse mais bela.
Foi dentro da compreensão
Desse instante solitário
Que, tal sua construção
Cresceu também o operário.
Cresceu em alto e profundo
Em largo e no coração
E como tudo que cresce
Ele não cresceu em vão
Pois além do que sabia
- Exercer a profissão -
O operário adquiriu
Uma nova dimensão:
A dimensão da poesia.
Fairbairn disse num dos seus textos
que a vocação da psicanálise era exorcizar demônios. Não sei por que desta
declaração, talvez porque os demônios tenham o poder da cegueira, mas afirmamos
que a psicanálise é uma teoria sobre a cegueira e uma busca da experiência que
faz os olhos abrirem. Para que as pessoas possam ver, em meio às coisas que
sempre viram no seu cotidiano sem ver e vejam fragmentos de um paraíso perdido.
Quando isso acontece (exceto quando há insistente resistência) o ser da pessoa
tende a se transformar, porque lhe é acrescentado uma nova ótica, uma nova
dimensão e um novo sentido à vida.