domingo, 2 de janeiro de 2011

O nosso nome é somente um rótulo chamado identidade, entretanto, não somos o que nos chamam, mas sim, uma legião internalizada por sermos muitos!


QUEM SOMOS NÓS?



EU ETIQUETA


Em minha calça está grudado um nome
Que não é meu de batismo ou de cartório
Um nome... estranho.
Meu blusão traz lembrete de bebida
Que jamais pus na boca, nessa vida,
Em minha camiseta, a marca de cigarro
Que não fumo, até hoje não fumei.
Minhas meias falam de produtos
Que nunca experimentei
Mas são comunicados a meus pés.
Meu tênis é proclama colorido
De alguma coisa não provada
Por este provador de longa idade.
Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro,
Minha gravata e cinto e escova e pente,
Meu copo, minha xícara,
Minha toalha de banho e sabonete,
Meu isso, meu aquilo.
Desde a cabeça ao bico dos sapatos,
São mensagens,
Letras falantes,
Gritos visuais,
Ordens de uso, abuso, reincidências.
Costume, hábito, permência,
Indispensabilidade,
E fazem de mim homem-anúncio itinerante,
Escravo da matéria anunciada.
Estou, estou na moda.
É duro andar na moda, ainda que a moda
Seja negar minha identidade,
Trocá-la por mil, açambarcando
Todas as marcas registradas,
Todos os logotipos do mercado.
Com que inocência demito-me de ser
Eu que antes era e me sabia
Tão diverso de outros, tão mim mesmo,
Ser pensante sentinte e solitário
Com outros seres diversos e conscientes
De sua humana, invencível condição.
Agora sou anúncio
Ora vulgar ora bizarro.
Em língua nacional ou em qualquer língua
(Qualquer principalmente.)
E nisto me comparo, tiro glória
De minha anulação.
Não sou - vê lá - anúncio contratado.
Eu é que mimosamente pago
Para anunciar, para vender
Em bares festas praias pérgulas piscinas,
E bem à vista exibo esta etiqueta
Global no corpo que desiste
De ser veste e sandália de uma essência
Tão viva, independente,
Que moda ou suborno algum a compromete.
Onde terei jogado fora
Meu gosto e capacidade de escolher,
Minhas idiossincrasias tão pessoais,
Tão minhas que no rosto se espelhavam
E cada gesto, cada olhar
Cada vinco da roupa
Sou gravado de forma universal,
Saio da estamparia, não de casa,
Da vitrine me tiram, recolocam,
Objeto pulsante mas objeto
Que se oferece como signo dos outros
Objetos estáticos, tarifados.
Por me ostentar assim, tão orgulhoso
De ser não eu, mas artigo industrial,
Peço que meu nome retifiquem.
Já não me convém o título de homem.
Meu nome novo é Coisa.
Eu sou a Coisa, coisamente.

Carlos Drummond de Andrade




No livro Another Country, Another King do bispo da Igreja Episcopal Escosesa, Richard Holloway, lemos nas páginas 112,113:


" Cristãos profissionais, líderes de igrejas ou pregadores, têm plena consciência de que são contradições ambulantes, fraudes autorizadas. Por outro lado, como figuras públicas, somos representantes da mensagem cristã, e as pessoas projetam em nós suas expectativas e anseios pessoais (...). Por dentro, temos tantas dúvidas, temores, ansiedades, cobiças quanto qualquer outra pessoa (...). Deus recorre efetivamente a fraude que somos, criaturas falhas e confusas, para dirigir às pessoas, confrontando-as, desafiando-as e consolando-as. Tornamos uma vez mais à ambiguidade, à ambivalência. A carne, o sangue e as neuroses galopantes ainda nos controlam em grande parte, mas Deus nos usa mesmo assim."


Após lermos as sinceras palavras do bispo Holloway, parece que o filósofo grego, Sócrates percebia há muitos anos atrás, as manifestações de ambiguidades, à natureza humana ao fazer o uso da sua máxima: "conhece-te a ti mesmo", declaração que nos conduz a internalização, um olhar para dentro, na tentativa de sabermos quem somos. Sim!
Quem somos nós? Ao lermos o escritor Fernando Pessoa, deparamo-nos com sua genialidade, incorporada em mais de vinte heterônomos. Ele conseguiu desalojar do seu interior várias identidades, quando ele era uma única pessoa. O mais interessante, que ao escrever os seus heterônomos, Fernando deu a cada um, pensamentos e sentimentos diferentes.


O heterônomo Álvaro de Campos dizia ser ele o "espaço entre vários fatos e épocas" em sua vida. Ele era o intervalo entre o que ele desejava, o seu eu e os anseios desejosos dos outros na tentativa de determinar o que ele deveria ser. Paulo, personagem bíblico, encontra-se numa situação, cuja identidade o deixou duvidoso ao afirmar: "o bem que quero fazer, não faço, mas o mal este faço continuamente", depois ele interroga, dizendo: "Quem me livrará do corpo desta morte"? Estudiosos do direito romano afirmam que o homicida daquela época, após o crime, tinha o defunto amarrado ao seu corpo, até entrar em estado de putrefação. Parece que Paulo percebia uma outra realidade, vivendo junto a ele e nele. Paulo, que antes se chamava Saulo, precedendo a sua conversão ao cristianismo, identificou que ele não era um, mas dois, ao afirmar que não era ele que cometia o que não queria cometer.Sendo assim, diante do conflito subjetivo do fazer e o não fazer, cabe aqui outra pergunta: pode o homem cometer o mal que não quer cometer? Parece que sim, sendo assim, o livre arbítrio se torna um grande absurdo pelo que vimos anteriormente na vida do apóstolo. Ele não conseguia fazer o bem que desejava, mas o mal que ele não queria este ele praticava. Se ele fosse livre para decidir, obviamente optaria pelo bem que tanto desejava praticar.


Quem somos nós? Provavelmente seres sem o direito de ser o que desejamos cujo objeto do nosso desejo não é o desejado. Há um gozo em fazermos o que não queremos realizar. Por que fazemos então continuamente o que não queremos? Porque gozamos. Não repetiríamos se não nos desse prazer! Contudo encontramos dentro de nós um outro personagem que tememos que seja descoberto. Declara Paul Tourneir: "O marido [noivo, namorado] se descobre capaz de dizer à esposa, à noiva, à namorada, no auge de uma discussão, palavras maldosas de perfídia e mesmo grosseiras incríveis. [Muitas das vezes não só diz como escreve cartas, cujo conteúdo transmite as mais duras e irreprováveis palavras]. Como é possível? Ele que é sempre tão fino, tão distinto, tão senhor de si. Jamais ele se conduziria assim como uma outra pessoa. É justamente porque a ama, a paixão furiosa pode tomar conta dele até tal ponto. Estranha inversão do amor! Ele fica aterrado, não somente com o seu comportamento, mas principalmente pelo fato de existir dentro de si coisas categoricamente inaceitáveis.Fantasias secretas, imagens obscenas, covardia vergonhosa, sentimentos criminosos nos invadem. Sentimos-nos muito humilhados não é somente pelo o que descobrirmos em nós, mas por sermos impotentes para apagar essas realidades no nosso ser escondido e no aparente. Não suportaríamos se essa realidade oculta fosse revelada".


"A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade, e a sua segunda metade voltava igualmente com meios perfis e os meios perfis não coincidiam verdade…Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta, chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela e carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia." (Carlos Drumond de Andrade).